segunda-feira, 6 de outubro de 2014

O CARTEIRO, A FLOR E A MENINA
Isabel Cristina Pereira Lopes
Tita era muito jovem ainda para entender muitas coisas da vida. Entretanto sua inocência era maior do que lhe permitia a idade. Isso se dava em razão de uma criação um tanto reclusa, com pouco acesso ao mundo adulto, e à época em que Tita vivia - lá pelos meados de 1976. 
Nessa época a pequena tinha 6 ou 7 anos, e já demonstrava medo de contrariar as regras sociais impostas. Já era perceptível a personalidade obediente que viria a se instalar naquela menina magrinha, de pele morena.
Fato é que estando Tita um dia a vaguear pela rua - nesse tempo a grande maioria das ruas dos bairros eram de terra e as casas tinham cercas - a menina viu um raminho de flores que tremulava ao vento. O colorido da flor lhe despertou o desejo de possuí-la. Tita não via mal algum em pegar as flores, todavia elas se encontravam do lado de dentro da cerca, e lá bem no fundinho da consciência inconsciente sabia que elas pertenciam a alguém e para tê-las era necessário pedi-las. 

Num ímpeto de vontade, encorajada pela incerteza de estar ou não cometendo uma infração, a nossa pequena esticou as perninhas, espichou as mãozinhas e alcançou as flores. Talvez fossem até Marias-sem-vergonha, daquelas que nascem sem ninguém plantar no canto das cercas. 

Pegou a flor, sentiu toda a maciez na palma da sua mãozinha, foi invadida pela alegria que as coisas belas e simples trazem às pessoas, em especial às crianças. Só então percebeu a vinda de um homem, vestido no traje cáqui, montado em uma bicicleta, daquelas calangas antigas. É preciso explicar ao leitor que Tita vivia em uma época que polícia não tinha tanto trabalho como hoje; que viatura, se é que existia, era na cidade grande; e que carteiro não vestia amarelo e sim cáqui, quase do tom dos soldados. 

Bastou ver o homem, que as perninhas da Tita tremeram: pronto pegaram-lhe em pleno delito! para ser mais preciso: roubo. Isso correspondia a no mínimo cem anos de cadeia - coisas da cabeça de Tita. 

É preciso dizer que nessa época crianças não sabiam de direitos, nem de órgãos protetores de menores, nem sabiam que no Brasil quanto menor for o valor do objeto roubado, mais propenso à prisão ficará o bandido. Sendo assim a nossa menina inocente pôs-se a correr, corria e olhava pra trás, só para certificar-se da perseguição implacável da suposta “polícia”. Qual não teria sido a visão do carteiro que desconhecia a agonia da Tita. Ele viu apenas uma criança correndo a balançar sua sainha de crochê ao vento. Estaria feliz, afinal criança vive em estado de felicidade, ao menos era o que presumia o carteiro. 

Ela correu até que saiu da visão do carteiro, ele a viu dobrar a esquina. Entretanto na cabeça dela a cena foi outra, antes de dobrar a esquina passara por um longo período de perseguição policial. Ah, aquela bicicleta voadora vindo em sua direção... como as bicicletas podiam ser tão rápidas? Mas assim que virou a esquina e cruzou o portão de casa a menina suspirou aliviada, tudo ficara para trás. Suas ofensas à lei teriam sido perdoadas? Quem sabe ela tivesse burlado a lei e conseguido escapar impune? E se o suposto perseguidor viesse reclamar mais tarde?

Indagações a parte, a realidade é que Tita sentiu pela primeira vez duas grandes sensações em fração de segundos: medo da condenação e alívio pela fuga.

Tita cresceu, o carteiro morreu, a polícia mudou, os crimes mudaram, as crianças mudaram, a lei mudou, a cerca deu lugar ao muro, as flores ao concreto, a terra da rua ao asfalto; tudo é diferente, mas parece que lá bem no fundo Tita ainda carrega a alma amedrontada por ameaças que as vezes nem ela mesmo sabe se são reais ou não. Quem sabe não seja mais um carteiro confundido com policia e o empréstimo de uma flor confundido com um roubo?